João Gilberto Saraiva

desenvolvedor de software | professor | escritor


Ponte para todos os marinheiros | João Gilberto Saraiva

Ponte para todos os marinheiros

19-12-2022

A ponte não é de concreto, não é de ferro, não é de cimento. A ponte é até onde vai o meu pensamento. A ponte não é para ir nem pra voltar. A ponte é somente pra atravessar. Caminhar sobre as águas desse momento.

O sábio Lenine canta - (nesta música aqui) - sobre pontes que não são unicamente aquelas sobre as quais os carros vem e vão cotidianamente. Palavra derivada do latim, ponte significa tanto essas estruturas rodoviárias quanto a peça de madeira que faz violinos, guitarras e outros instrumentos de corda soar. De componente de uma prótese dentária que permite falar e comer melhor até dia útil entre feriados e também parte de um navio.

Dada essa polissemia, é justo dizer que o livro “Navegando no Universo da Programação: conselhos para aproveitar e curtir a área tech” de William Oliveira é uma ponte para todos os marinheiros. Sejam os que ainda pensam em se aventurar nas águas da programação, open-source e afins e até velhos marujos desse mar de desenvolvedores. Isso porque utilizando exemplos variados, a obra atravessa questões de aprendizado, protagonismo, vida em comunidade, preconceito, mudança de emprego, e muito mais.

Um trunfo dele é conseguir abordar esse oceano da tecnologia sem ser maçante e ou se alongar excessivamente. Na realidade, o livro é direto e com capítulos curtos - textos vindos de postagens de blogs. Algo que gostei bastante, pensando no público dos meus alunos de cursos de Informática que anseiam por conteúdos não estritamente técnicos, mas que tratem da vida, o trabalho e os dilemas de quem vive/curte o mundo da programação. Reflexões interessantes também para o meu próprio caso, alguém que migrou gradativamente das salas de aula para os times de desenvolvedores.

No início do livro o leitor é levado a refletir sobre a convivência nas comunidades pelos olhos e experiência de quem já deu mancada nelas antes de aprender como aproveita-las. A seguir, rememoramos a curiosidade das crianças para pensarmos a necessidade de espírito criativo e experimentador. William discute, em sequência, o protagonismo na aprendizagem se distanciando da abordagem que tradicionalmente identificamos com as escolas (decoreba, provas, conteúdo datado, aulas monótonas, etc.). Claro que o ambiente escolar não é apenas essa caricatura e como professor fiquei feliz que ele se aproxima de métodos e filosofias educacionais que apostam na autonomia do sujeito que ensina e aprende. O autor referencia a Pedagogia Montessori, mas há perspectivas diversas como a da Pedagogia Waldorf, vale muito conhecê-las.

O livro também aponta como criar mapas mentais, estruturar conteúdos e aproveitar o autodidatismo sem escorregar nas suas armadilhas. Um conjunto de habilidades que inclui como validar e mensurar o conhecimento, evitar o afobamento e a sensação de estar estagnado. Há diversos tópicos sobre como sair da teoria e efetivamente praticar as tecnologias que você quer/precisa dominar. Alguns capítulos tratam sobre emprego: requisitos de vagas, medos, trabalho em equipe, e outras temáticas. Discussões interessantes são levantadas sobre o que é um bom emprego, e como e qual momento de sair de um trabalho. William trata de ambiente tóxico, especialização, fit cultural, sensação de estagnamento, saúde mental e emocional, etc.

No último terço do livro é discutido como retornar as comunidades (via produção de conteúdo, interação nas redes sociais, respostas em fóruns, mentorias) os saberes que adquirimos lá. A seguir ele defende a necessidade de cursos e vagas para LGBTs e outras minorias, levantando dados sobre a gritante exclusão social e educacional desses grupos e a necessidade de políticas afirmativas. William trata também dos preconceitos com certas tecnologias (Java, Ruby, Javascript, etc.) que acabamos recebendo e espalhando, na maior parte das vezes acritacamente. O mercado do desenvolvimento de software, como todos os outros, é atravessado ao mesmo tempo por modismos e transformações estruturais e tecnológicas. A reflexão e experiência é que permite discernir sobre necessidades, escolhas, abstrações e adaptações que realizamos no oceano da tecnologia.

No mais, creio que “Navegando no Universo da Programação” deveria fazer parte da biblioteca de universidades e cursos técnicos com cursos de Tecnologia. Seu conteúdo deveria de algum modo está inserido nos materiais de bootcamps e cursos promovidos por diversas instituições. Isso porque tem conteúdos importantes e reflexões pertinentes apresentados com uma escrita direta e fluida. A obra me ajudou a velejar os medos e incertezas em um momento em que me propus a deixar a terra firme de uma carreira consolidada como professor para me aventurar no mar da programação. É por tudo isso, como disse lá no começo, que este livro é ponte para todos os marinheiros.

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Imagem: “Boat and Bridge” by Wilson Lam {WLQ}”. Fonte: Open Verse, Flickr, Creative Commons 2.0