Da Alice ao Lego: aprendendo para além da superfície
Ao longo das primeiras semanas do curso CS50, uma expressão repetida diversas vezes pelo professor David Malan chamou minha atenção: “see under the hood”. A tradução literal - “ver debaixo do capô” - não nos dá pistas seguras sobre o que Malan quer dizer. Ele está falando em aprender investigando como as coisas funcionam. Parece um conselho óbvio, ir além da superfície para compreender melhor algo. No entanto, é quase um crime - em um mundo cada vez mais acelerado - aconselhar alguém a imitar Alice e descer em um buraco perseguindo o Coelho Branco.
A proposta é justamente essa, levantar as cortinas e entender o que está por trás dos panos. Não se contentar com a informação pronta - x é x, y é y - e fazer a pergunta mais desafiadora das crianças: por quê? A natureza investigadora dos pequenos pode nos servir de inspiração. Por vezes, os adultos se chateiam quando encontram um brinquedo novo sem uma ou duas peças. Mas a criança tem uma dúvida urgente a ser respondida: como é que aquilo funciona? A ideia do professor Malan é responder isso partindo para os conceitos fundamentais do que ele está ensinando e ir combinando-os de modos variados. É claro que este caminho não é útil somente para a Ciência da Computação, mas em qualquer situação que envolva aprendizado.
A curiosidade move o mundo e Alice surpreende-se a cada página de sua jornada. Ela reflete se deve tomar o líquido da garrafa com rótulo “beba-me” e do bolo no qual está escrito “coma-me”. Sua perspectiva é a da dúvida e da experimentação, algo que lhe rende muitas aventuras e saberes. Esse ponto de partida é profícuo para quem quer aprender, pois permite produzir um alicerce firme para o conhecimento.
No início do ano passado, comecei a aprender uma língua nova. Minha irmã, que já domina o idioma, comentou algo que seus professores lhe disseram: o alemão é como Lego, as palavras são formadas pelo encaixe de outras. O que é mágico nesse e em outros brinquedos do gênero é justamente essa capacidade de combinação quase infinita de possibilidades, que permite que cada um possa criar suas próprias formas e sentidos. Meses depois, eu estava vendo algo no mapa da Europa no celular quando fui atingido como um raio pela compreensão de porque a Áustria se denomina “Österreich”. “Ost” significa Leste e “Reich” é Reino. Ou seja, a terra dos austríacos é o reino a leste da Alemanha.
Felizmente, não apenas as palavras e as peças de Lego - que nasceram ali perto, numa carpintaria na Dinamarca - têm a característica de produzir novas formas a partir da junção de outras. O modo como entendemos o que nos rodeia é pessoal e apenas parcialmente transferível para outras pessoas. Não é um método eficiente de aprendizado simplesmente copiar o modo como outra pessoa aprende. É interessante, justamente, formar seus próprios blocos de conhecimento com peças que recolhemos em lugares e tempos diferentes. Encaixá-las de vários modos até chegar numa estrutura firme, mas ao mesmo tempo capaz de ser reformulada com novos saberes que vamos adquirindo ao longo do caminho ou reaproveitadas em situações diversas. Quanto mais fizermos isso, melhores seremos nessa reconfiguração de saberes. Quanto mais olharmos por trás dos panos, mais capazes seremos de entender os conceitos-chave e modelá-los de modo criativo. Não sei se David Malan já brincou um dia com peças de Lego ou leu Alice no País das Maravilhas, mas ele tem toda razão em insistir no “see under the hood”.
Imagens: Alice in Wonderland e Unemployment was high in lego land . Fonte: Open Verse, Creative Commons 2.0