Os oleiros do desconhecido
As sensações e memórias por vezes são visitas inesperadas e contentes, como o sabor de uma comida que retoma o arrepio da pele no contato com a água do mar ou uma canção que escapa de uma janela qualquer no meio da noite e nos remonta um lugar querido. Esses dias, por conta do curso CS50, retomei a linguagem de programação Python. Bem, a última vez que eu escrevi algo nessa linguagem foi há alguns anos, época em que eu estava começando a aprender programação. Então, esses dias trabalhei em pequenos programas como quem experimenta desenhar com uma caneta esquecida há tempos no fundo de uma gaveta. Eu voltei ao caminho do aprendiz.
Entre testes e pesquisas para fazer os exercícios lembrei de como tudo parecia nebuloso naquela época. Hoje, apesar de eu não dominar a linguagem, tenho fundamentos mais sólidos e consigo ter um entendimento mínimo do que fazer em cada situação. Antes, como é próprio de alguém começando a aprender, muitas vezes o desafio era não apenas fazer algo funcionar, mas entender o porquê funcionava ou não. Entre uma linha e outra de códigos eu arriscava uma opção nova e recebia um erro em vermelho na tela. Depois perguntava aos amigos mais experientes ou procurava na internet uma saída e ia adaptando as respostas variadas ao que pretendia fazer. Conceitos-chave para compreensão do contexto e de como cada coisa funcionava ainda estavam se formando, então cada passo era incerto.
Aprender é o desafio de modelar o desconhecido, como um oleiro que faz um jarro da argila. A depender da sua idade, você pode estar pensando naquela cena clássica do filme Ghost (1990) com o casal fazendo juntos um pote de barro torto, mas é sério. Aprender não é um simplesmente acumular em uma sacola de feira conhecimentos teóricos e práticos, é refinar a técnica através da qual organizamos e utilizamos o que sabemos. E é certo que não há um ponto de parada nessa arte de aprender, sempre há algo para descobrir e testar. Para não sair do tema, vale lembrar uma anedota de Pablo Picasso. Ele já idoso visitou oleiros da cidadezinha francesa de Vallauris. O pintor se encantou pela argila, roda de oleiro e cores sobre a cerâmica, morou na cidade por sete anos e em vinte produziu milhares de peças. Em duas décadas suas mãos de pintor e desenhista ganharam a força e desenvoltura dos oleiros refinados que retiram do barro formas que antes habitavam apenas o mundo das ideias. Só que para isso acontecer, claro, existiu um incontável o número de vasos, pratos, esculturas e outras peças que suas mãos deformaram, bolos de argila que estragaram enquanto ele aprendia ou inventava novas formas.
Entre os primeiros cursos que fiz, me chamou atenção o Python para Zumbis do competente e bem-humorado professor Fernando Masanori. O foco é introduzir novas pessoas no mundo da programação, bem o que eu procurava a época. Ao longo dos vídeos, em situações diversas de erro na tela depois de algum comando, ele solta um dos seus mantras: “Eu sou feliz, eu vou aprender mais”. Para além do descontentamento que todos temos ao errar, Masanori aponta que não acertar nos dá a possibilidade de ampliar nosso conhecimento. Sua perspectiva é a de quem sabe o que é aprender, de quem busca entender o erro para contorná-lo, refinando a técnica e ajustando a rota. A alegria com que ele diz isso pode soar a primeira vez ingênua e irreal. Na época, eu mesmo olhei para tela e sobrepesei minha situação: trinta anos na cara, onze estudando História, faltando poucos meses para ser pai, provas de mais de 300 alunos para corrigir e o cara vem me dizer para eu ser feliz por errar. Na boa, eu devo ter imaginado um palavrão e talvez encaminhado o ponteiro do mouse para fechar a janela. Só que algo ali me capturou, a página seguiu aberta.
Os meses passaram, terminei esse curso introdutório, depois outro, fui mudando de tecnologia ao sabor do que iam me apresentando. Segui compartilhando o que estava aprendendo com pessoas mais próximas, também nas redes sociais e em textos do blog. Um dos amigos, Brenno, me perguntou em algum momento como estava sendo a experiência de explorar algo totalmente fora do que eu conhecia. Não sei exatamente as palavras que disse na hora, mas o sentimento era o misto de satisfação e curiosidade que temos com as novas descobertas. Eu com alguns anos de docência e vários diplomas guardados numa pasta, experimentava mais uma vez a alegria de não saber, de poder errar a vontade e ir descobrindo aos poucos o mundo. De ser atingido pela compreensão de um conceito enquanto tomava banho, de acordar cedinho para trabalhar com uma saída para o problema X na ponta dos dedos, de poder descobrir algo e comentar consigo mesmo: “caramba, isso estava ai o tempo todo”. Retomar os exercícios de Python me lembrou a felicidade de aprendiz que experimentei poucos anos antes, que o brilho nos olhos pelas descobertas não é apenas um direito das crianças e adolescentes, mas de todos aqueles dispostos a aprender.
Imagem: “Free person making handmade pottery”. Fonte: Open Verse, Creative Commons 1.0