Códigos e Aforismos: lições da programação para a escrita nas Ciências Humanas
Quem nunca se exasperou diante de um texto, livro ou tese escrito de forma truncada e incompreensível? Ou, o que é pior, se perdeu entre repetições, citações intermináveis e floreios literários que mais obscurece do que facilitam a compreensão efetiva do argumento? Como um professor e desenvolvedor apaixonado por literatura, considero isso um sério incômodo. Em um contexto onde a demanda por conhecimento explorando novos formatos — do YouTube ao Chatgpt, passando por podcasts e games — cresce exponencialmente, a clareza da escrita torna-se uma questão urgente para as ciências no geral e crucial para o ensino.
Um dos aprendizados que o universo da programação oferece para as Ciências Humanas é a prioridade inegociável dada à clareza, concisão e simplicidade. Isso não implica uma linguagem opaca e desprovida de estilo, que imite a frieza de um gerador de texto automático, mas sim uma escrita que se subordina a padrões mínimos de inteligibilidade. Em um contexto em que cada vez mais nos dedicamos a construir ferramentas, bases de dados e narrativas interativas, esse princípio da clareza se torna o elo vital entre a tecnologia e a interpretação humana. Os códigos de programação produzidos em qualquer linguagem, precisam ser suficientemente claros para a compreensão da máquina e de humanos. Devem ser o mais concisos possível para garantir que resolvam problemas de forma eficiente. Uma boa prática de programação, ao se deparar com desafios complexos, é desmembrá-los em partes menores para facilitar tanto o entendimento quanto a manutenção do sistema. Uma das linguagens de programação mais populares, o Python, possui até mesmo uma série de aforismos sobre esse tema, cunhados por um de seus desenvolvedores, Tim Peters. “The Zen of Python” afirma que:
Bonito é melhor que feio. Explícito é melhor que implícito. Simples é melhor que complexo. Complexo é melhor que complicado. … A legibilidade é fundamental.
Ao ler esses aforismos, o amigo historiador Gustavo Mor lembrou das litografias de “Touros” (1945) de Pablo Picasso. Nesse estudo, o artista espanhol produziu a imagem de um touro e a decompôs gradativamente, traço a traço, até encontrar a essência mínima e mais poderosa da figura. Em uma perspectiva visual, Picasso decantou a complexidade até a simplicidade, sem jamais perder a beleza ou a originalidade.

Imagem: “Touros de Pablo Picasso”. Fonte: Art Ref
O paradigma é análogo: o objetivo é manter a linguagem legível e com argumentos às claras, sem abandonar o estilo próprio. O simples é a meta. É evidente que há questões inerentemente complexas que não podem — e nem devem — ser simplificadas sob o risco de tornar uma explicação anacrônica, rasa ou mesmo falsa. No entanto, a complexidade inerente ao tema é sempre preferível à complicação desnecessária e retórica. Paradoxalmente, hoje, nos deparamos em toda parte com textos produzidos por modelos de Inteligência Artificial (IA) que não seguem essa lógica. Muitos deles, mesmo claros, trazem embutidos um entusiasmo excessivo, uma superficialidade mercadológica ou, pior, informações incorretas (as chamadas “alucinações”). Além disso, frequentemente, falta-lhes o essencial que as Ciências Humanas buscam: a nuance, a profundidade contextual e a voz autoral que confere sentido à condição humana — a decomposição do touro de Picasso — é o que nos diferencia.
Esse paradigma ecoa perfeitamente os mandamentos da escrita listados por Robert Darnton — um historiador notório por sua experiência em produzir para os mais diversos formatos:
Não sucumbirás ao monografismo. Escreve monografias, se for o caso, mas escreve para o cidadão comum, de maneira que possam ser compreendidas.
Não esquecerás tua missão. Trata-se de dar sentido à condição humana, explicando as experiências vividas pelos seres humanos – e não marcar pontos entre os colegas acadêmicos.
Certamente Robert Darnton, Pablo Picasso e Tim Peters teriam muito o que conversar!
De todo modo, a questão permanece: vale a pena usar as lições da programação para pensar em uma escrita Zen — clara e concisa — para as Ciências Humanas?
Aposto que sim! A busca pela clareza é a busca pela eficácia na comunicação, e a clareza deve ser um pilar para as Ciências Humanas e especialmente o ensino.
Para saber mais: