Os olhos das pequenas coisas
Distraídos sob o amanhecer, alguns acenos e sorrisos desabrocham quando eles passam. Uma bicicleta, uma cadeirinha, um par de luvas e dois capacetes descendo a ladeira às sete horas da manhã. Pai e filha seguem seu caminho matinal de casa até a escola. - Bom dia! Diz a criança com tranças. - Bom dia! Responde o jardineiro com um ciscador em mãos. - Bom dia! Responde a senhora catando recicláveis em frente a um condomínio. A menina de capacete rosa já faz parte do cotidiano dos aposentados na banca do jogo do bicho, dos policiais na padaria em frente e das pessoas que esperam o ônibus para ir trabalhar, mas sua passagem sempre os anima.
Canta Gilberto Gil, com razão, o eterno deus mudança. No momento em que eu mudei de profissão, em que Ada alcançou a idade escolar, a primeira vez que estava livre para trabalhar só depois das oito horas. Foi quando me veio a ideia: pedalar todos os dias juntos. De lá para cá, dois mil e quinhentos quilômetros e três pares de pastilhas de freios. Estimativas apontam 425 quilos de gás carbônico a menos no mundo, mas o peso maior é o da transformação interna, radical e sutil como o olhar de criança.
Pedalando entre Pirangi e Capim Macio, Ada guia nossa atenção para as chananas e outras rosas rebeldes - brancas, roxas e cor de laranja - que nascem no meio-fio. Ela coleta algumas para a professora ou simplesmente para brincar de cozinha mais tarde em casa. Subindo um morro íngreme, ela pergunta como seria uma cidade sem casas, ou se os carros voarem pelo céu ao invés de ocupar as ruas. Ada questiona o que fazem os tratores e outras máquinas que encobrem o som dos pássaros numa determinada rua. Gosta de ver com calma as iguanas saindo da mata, os cachorros e gatos, com e sem dono, que passeiam logo cedo. Seu bom dia surpreende os invisibilizados, os catadores dentro de uma caçamba, os bêbados amanhecidos nas calçadas, um homem sem camisa que por algum motivo faz um buquê improvisado com flores do mato.
Dez anos antes eu estava caminhando pelo centro histórico de uma pequena cidade no norte de Portugal. Naquela manhã cinzenta de inverno, eu parei sozinho em frente a uma fonte seca com uma mureta de pedra, aparentemente abandonada. Passei rapidamente os olhos na mensagem em latim acima dela, pois o que me chamou a atenção foi a combinação de pedra e musgo. Tirei a mão de dentro do casaco para sentir o seu frio refletindo sobre quantas cenas da vida cotidiana aquelas pedras já tinham visto ao longo dos séculos. Por outro lado, me perguntando se as pessoas ainda paravam para ver as pequenas coisas esquecidas nos seus detalhes. Os passos de alguém vindo me tiraram dos meus pensamentos, guardei minha mão no calor do bolso e segui andando sem olhar para trás.
Uma década depois, já sob calor matinal da minha cidade natal, Ada me ensinou que sim. Ainda há quem veja com atenção, que atente para as pessoas e as coisas como quem encontra novidade, mesmo que ela seja banal. Do alto da sua infância, ela incentiva a pintar a realidade com as cores da imaginação, a ver o mundo com os olhos das pequenas coisas.
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Imagem: João e Ada a caminho da escola.